Jogar futebol na rua fica mais caro em 2014

O governo de Mariano Rajoy aprovou, em Conselho de Ministros, uma versão daquilo que poderá ser a futura Lei da Segurança e Cidadania em Espanha. Uma das novas penalizações a ser introduzida na lei é a “prática de jogos ou desportos em espaços públicos que não tenham sido concebidos para tal”. Tal significa que actividades como jogar à bola na rua vão passar a dar direito a multa. De acordo com a imprensa, este tipo de coimas deverá variar entre os €100 e €1000 e serão aplicadas quando “houver risco de dano de propriedades ou pessoas” ou quando houver impedimento do tráfego rodoviário devido a tal prática desportiva. A decisão está já a causar sururu em Espanha e é fácil perceber-se porquê.

Se olharmos para o futebol como uma arte, podemos afirmar que os melhores artistas são aqueles que começam por pintar na rua. Faça sol ou chuva, haja lama ou neve, existem sempre condições para uma “peladinha”. Então aí, nesse rectângulo mágico onde duas pedras são uma baliza, os benjamins vão ganhando aquele “ginga”, aquela garra belicosa e aquele descaramento – quase político – com que avançam para os adversários. É aí, no verdadeiro teatro dos sonhos, que desenvolvem o traço que distingue os predestinados dos grandes jogadores, mas com a aprovação desta lei, serão muitos os niños que ficam sem tela para pintar. Ainda assim, o desaproveitamento de futuros magos do futebol não é, como diria Pacheco Pereira, a questão essencial…

Citando Camões, “outro valor mais alto se alevanta”. Sim, Espanha (numa 1ª fase, na maneira como este tipo de ideias ganham dimensão, quem sabe a Europa e consequentemente Portugal numa 2ª) perde possíveis Messis e Ronaldos, mas milhares de miúdos perdem, numa geração cada vez mais agarrada às novas tecnologias, a oportunidade de brincar na rua – “de jogar à bola”. Esta é uma lei pró-sedentarismo, disso não haja dúvida. Por arrasto, perde-se ainda a verdadeira aura do desporto rei: o futebol de rua. Jogar na rua é pegar no conceito “futebol” e com uma borracha utópica apagar todas as coisas más, a que a modalidade dá guarida.

Antes de mais, os jogadores são escolhidos, um a um, para as equipas. De graça, sem milhões de euros em cima da mesa, apenas milhões de sonhos. Depois, não é preciso ser um Diego Velásquez do futebol para poder jogar na rua. Desde o puto-maravilha lá da aldeia, até ao maior tropeço, todos podem jogar. Durante o jogo, existem sempre grandes casos de arbitragem, mas como não há árbitro, esses casos são tão efémeros como os hematomas nas pernas dos miúdos. O gordo vai sempre à baliza, porque… sim. Há sempre um miúdo mais franzino, que antes do começo da partida diz “não vale remates de força”, para desalento dos miúdos mais velhos. Quando o jogo começa, já ninguém mede a velocidade da bola. Os resultados finais têm sempre dois dígitos e há sempre alguém que marca uns dez golos ou algo ainda mais irreal se o miúdo for um Inzaghi em ascensão. O jogo nunca acaba com os três apitos do árbitro, mas sim de três possíveis maneiras: os “jogadores” são chamados pela mãe para irem jantar e o jogo termina de imediato; as equipas não aguentam o cansaço e procede-se à regra de “quem marcar ganha”, mesmo que o resultado seja 12-4 para uma das equipas; o dono da bola zanga-se a meio do jogo, possivelmente por causa de um remate de força, e leva a bola para casa, para desespero da pequenada.

A mais recente regra para acabar com o romantismo no futebol é o pagamento de uma multa entre os 100 e os 1000 euros, a ser paga sempre que uma criança for “apanhada” a cometer o delito de jogar futebol. As ruas espanholas ficarão nos próximos tempos certamente mais calmas e arrumadas, mas também ficarão menos alegres e com um vazio que chamará certamente alguém à razão. Nessa altura, devolvam os pincéis aos miúdos e deixem-nos jogar à bola…

Visão do Leitor (perceba melhor como pode colaborar no VM aqui!): Pedro Bento

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